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Meu cabelo, minha raiz.

  • Patrícia Pagu
  • 22 de nov. de 2017
  • 8 min de leitura

Nascida e acolhida em lar negro, com acolhimento familiar com muitos, mas muitos traumas oriundos do racismo alisei o cabelo pela primeira vez aos 7 anos de idade. O padrão de beleza motivado pela obsolescência perceptiva dizia o tempo todo que eu não prestava e por isso era necessário eu alisar o meu cabelo para ficar e estar menos preta diante da sociedade.


A violência desse processo iniciado ainda na infância se dá por diversos fatores distintos. O primeiro da ilusão de ser aceita pela condição do seu cabelo, segundo pelo embranquecimento social que também faz parte do seu imaginário, terceiro a agressão de fato devido a química utilizada para mudar totalmente a estrutura biológica da sua formação humana.


O processo de alisamento é muito cruel com mulheres que sem informação e sem consciência do processo da auto negação, faz com que a mulher negra se submeta a um processo químico que arde seu couro e confunde por completo seu posicionamento enquanto ser social.


Para começar vou falar da questão física da coisa.


Quem já passou por um processo químico de alisamento ou relaxamento de cabelo, a fim de endurecer menos a sua condição, sabe o quanto é dolorido esse processo. Comigo foi assim, minha mãe, que também fora oprimida diante da sua condição de mulher negra, tinha extrema dificuldade de pentear meus cabelos crespos, minha avó com a maior paciência e ainda mais oprimida que minha mãe diante de sua condição de mulher negra se incumbia na maior parte do tempo na missão de penteados para que eu estivesse com cabelos comportados para não incomodar a sociedade branca e com comportamento opressor e imperialista. Diante da distância e a dificuldade de cuidados periódicos por parte da minha avó, minha mãe resolveu que seria melhor para minha vida que meu cabelo fosse alisado.


Imaginem só, eu preta com um colorismo de pele um pouco mais clara que do meu irmão e da minha mãe, sendo mais parecida com a família do meu pai que é descendente de italianos com olhos verdes, tive a ilusão do embranquecimento imediato.


Vários fatores fizeram com que eu desejasse esse embranquecimento e a negação de minha própria origem: 1- o bullyng constante por causa da condição do meu cabelo, eu tinha apelidos como palha de aço, bombril e cabelo de milho; 2- o fato de eu ter uma cor diferente do meu irmão e da minha mãe, ser uma negra mais clara fez com que meus amiguinhos na escola me dissessem a todo momento que meu cabelo não negava minha raça e eu era tão macaca quanto qualquer outro (meu apelido escolar era Babuíno); 3- a falta de informação sobre questões que me valorizasse como literatura voltada para minha origem, na minha adolescência eu conhecia apenas uma modelo negra, assim mesmo com cabelos modificados, Naomi Campbel. A falta de referência fazia com que eu visse todos os negros a minha volta prestando serviços braçais ou domésticos, e brancos bem sucedidos e em posição de privilégios.



Não que não houvessem brancos na mesma condição social ao qual eu me encontrava, mas a maioria das pessoas em minha situação eram negras, exceto a orientadora educacional da escola primária onde estudei no bairro da Volta Grande em Volta Redonda, Dona Dirce era negra com cabelos crespos que constantemente estavam trançados, eu a visualizava e sentia orgulho de quem ela era. 4- O famoso cabelo ruim. Este termo, fala de gente branca para menosprezar a condição da pretitude e denigrir a sua imagem, serve para fazer com que a pessoa negra se sinta em condição inferior a pessoa branca ou o negro com cabelos com estrutura indígena ou branca. - Um negro de cabelos lisos ou encaracolados raramente se sente negro de fato, pela condição da estrutura do seu cabelo. Na verdade o chamado cabelo ruim não é ruim, ele é crespo e nada mais que isso. Cabelo ruim é cabelo com doenças, com quedas, com piolhos, com seborreias, todos esses casos resolvíveis com uma boa visita ao dermatologista. Cabelos lisos e encaracolados, diante desta afirmação, também podem ser ruins.


O processo de alisamento é muito agressivo com o corpo humano, sendo os produtos alisantes com composições altamente perigosas para a saúde, algumas até cancerígenas. Posso citar aqui algumas mais utilizadas no Brasil: Hidróxido de sódio ou hidróxido de amônia, ambas com alto grau de periculosidade podendo, inclusive, causar ferimentos graves e a perda do couro cabeludo se passado de forma indevida; tioglicolato é um dos mais leves, mas seu cheiro forte e as precauções em sua bula fala do perigo em deixar o produto por um longo tempo; a guanidina além de ressecar muitíssimo a massa capilar, também tem observações quanto ao tempo que permanece no cabelo; o lithium é um produto utilizado em produção nuclear, encontrado em abundância na África e muito utilizado pelas Angolanas na cidade do Rio de Janeiro. Esses tratamentos não são baratos, mesmo que a química utilizada tenha um baixo custo, é necessário um profissional habilitado para aplicá-lo nos cabelos para evitar danos drásticos e uma série de produtos complementares para manter a saúde dos cabelos, já que todos esses citados acima tiram muito mais da estrutura capilar do que é divulgado pela indústria da beleza.


A minha primeira vez foi com uma profissional no bairro operário onde eu morava numa cidade do interior do Rio de Janeiro, a profissional muito requisitada me fez esperar, junto com a minha mãe, o equivalente a duas horas e meia para começar o meu atendimento. Eu com os cabelos virgens, estava muito empolgada pelo processo de transformação de vida através daquele ato. Quando foi mais ou menos umas 16:30 fui atendida, sentei-me numa cadeira com almofadas para aumentar meu tamanho para que o trabalho fosse executado com eficácia. O produto escolhido para o meu atendimento foi da marca LUZAN (hidróxido de sódio) alguns dizem que contém soda cáustica, coitada da minha mãe, julgava ser o melhor pra mim já que ela própria o utilizava também, pelos mesmos motivos ao qual me submeteu a este tratamento, aceitação social.



Devidamente sentada começou o processo de divisão do meu cabelo, como eu ainda era muito criança não possuía força no pescoço ouvindo insistentemente de minha cabeleireira para que eu segurasse meu pescoço. O pente passava entre meus fios e o embaraçamento, próprio do meu cabelo que é crespo, porém fino, doesse de forma insistente. Depois de dividido o cabelo, era a vez de aplicar a pasta, como era chamado o produto. Verde com um cheiro forte, a profissional passava de mecha em mecha levando-me para o lavatório a cada mecha completa, o risco de queda e até de ferimento era real caso a cabeleireira não cumprisse esse ritual de forma eficaz. Após o alisamento concluído, meus cabelos foram cortados pela primeira vez: - Vou só aparar as pontas. - disse a profissional. Quando eu pensava que todos os processos haviam cessado, veio o enrolamento com bobs (rolos de plástico que enrolavam mechas de cabelos presos com grampos), e depois eu fui encaminhada para um secador fixo. Completados mais ou menos 15 minutos de secador, os bobs foram retirados e o meu alisamento concluído.


Após esse debute minha vida foi de escravidão em prol da adequação ao padrão de beleza social, descaracterizando as minhas origens e contextualizando-a ainda mais, já que cabelos alisados nunca seriam cabelos lisos de fato. Essa escravidão veio com muita dor e ainda mais exclusão, já que havia uma grande dependência econômica para manter o padrão de beleza almejada pelas negras da minha geração, nascidas entre os anos 70/80, e como eu era filha de mãe pobre e que nem sempre possuía dinheiro suficiente para o cobiçado alisamento dos meus cabelos, me via constantemente me escondendo para que não fosse excluída do sistema que me jogava o tempo todo na cara a minha condição de pobreza por não ter os cabelos lisos e escovados. Minha mãe, coitada, algumas vezes tentou ela mesmo alisar minhas madeixas, sem sucesso, pois não conseguia penteá-los com eficácia imagine cumprir um processo tão difícil quanto perigoso do alisamento. Durante toda minha adolescência eu passava entre momentos de cabelos alisados, de cabelos ressecados, de quedas capilares, de cabelos maltratados...


Com o tempo novas tecnologias foram surgindo, novos tipos de alisamento foram se tornando mais acessíveis, o barateamento de algumas técnicas, o encarecimento e sofisticação de outras e eu consegui meu primeiro trabalho e primeiro salário, podendo alisar de forma cotidiana meus cabelos. Nesse processo mudei diversas vezes de técnicas, fiz permanente afro com químicas tão agressivas quanto as do alisamento, e então descobri um salão de beleza no ano de 2001 no bairro da Tijuca chamado Beleza Natural. As mulheres chegavam na fila as sete horas da manhã e saíam de lá entre as dezessete e vinte horas com os cabelos cacheados e balançando... era um sonho. Pensei eu: Se é natural não vou sofrer tanto. Um tratamento muito mais acessível aos que eu já estava acostumada, que me daria uma libertação em relação à um grande trauma de todas as alisadas, a raiz que enrola.


Ora bolas, se a estrutura do seu cabelo é enrolada ou crespa é natural que a raiz do seu cabelo enrole, mas essa escravidão não permite que nós admitamos esse deslize da nossa estrutura biológica. Como dizemos muitas vezes, “a prova da minha negritude está na raiz do meu cabelo. Se enrolou, ferrou.” Relaxando os meus cabelos nesse salão não teria mais problema com raíz, com negritude, com minhas origens e eu não passaria o constrangimento de ser uma negra com cabelo duro, como dizem alguns. Meus cabelos foram relaxados, mas não enrolados, a estrutura do meu é um crespo que não enrola, e isso me causou muita frustração. As profissionais que me atendiam diziam que eu precisava utilizar de forma correta os produtos da marca, e eu assim repetia o ritual religiosamente, sem sucesso e demonstrando mais uma vez que eu não era tão natural como eu ousei querer ser. Durante muitos anos eu oscilei entre o alisamento e o relaxamento aplicado no Beleza Natural. Até o dia em que eu quis saber quem eu era de fato, e a primeira atitude que tomei foi cortar de forma radical meu cabelo longo, relaxado e pintado de vermelho.


No dia seguinte eu me sentia tão livre, tão eu... nesse momento minha mãe também já havia se libertado e queria um outro tipo de posicionamento social, já que sempre teve uma atitude de esquerda, feminista e voltada para o movimento operário. Comigo assumindo o meu cabelo da forma como ele havia sido estruturado desde o útero da minha mãe, com todos os gens dela em conjunto com os gens do meu pai eu pude me enxergar melhor e buscar respostas para quem eu era de fato. Fui descobrindo cada onda, cada ressecamento, cada dificuldade de se ter um cabelo crespo. Junto com isso descobri a beleza que ele me traz, a autenticidade, o empoderamento.


Descobri neste momento que ter o cabelo crespo é um ato político e não somente estético. Quando digo que o negro é lindo conforme sua estrutura natural, eu vou contra todo o padrão de beleza eurocêntrica e o absenteísmo perceptivo imposto pela cultura do consumo. Nesse momento eu valorizo a minha saúde, minha beleza, minha cultura, meu povo. Através disso desenvolvo argumento que combate uma cultura eurocêntrica que insiste em nos escravizar de forma sócio-psicológica, que me diz que eu só serei valorizada se eu me vestir, se eu falar, se eu me portar como a massa de manobra faz.


Toda vez que me olho no espelho tenho a certeza que o princípio da minha libertação se deu a partir do momento que eu disse não ao processo de adoecimento da alma que não se aceita por conta de todo um contexto social ao qual está envolvido. Deixar o cabelo crespo é um grande ato de rebeldia de uma sociedade opressora e assim como muitas irmãs eu tenho o orgulho de me apresentar socialmente com o cabelo tal qual a minha origem pertence.



Patrícia Pagu é Pedagoga, trabalha com juventudes, mangueirense e feminista libertária. Umbandista e militante religiosa.

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